Naquele fim de tarde de sexta-feira, já o sol quase se pondo pra os lados da Ilha Grande de Santa Isabel, a ainda menina Noca ficou parada na frente do portão da casa do advogado Felício Nogueira, esperando ser atendida. Vinha trazer as roupas lavadas e engomadas da casa de um dos homens mais ricos e ditos de fama de Parnaíba, um homem conhecido até fora do Brasil, que falava vários idiomas, conhecia terras estrangeiras e diziam alguns, que era casado com a filha de um ministro de Getúlio Vargas.
Noca bateu palmas duas vezes. Depois mais uma vez. E foi aí que a porta se abriu e lá de dentro saiu um homem muito elegante. Logo atrás vieram duas meninas, com idades entre dez e doze anos, lindas, louras. As meninas olharam pra mocinha na calçada e sem darem importância voltaram de onde vieram. A entregadora de roupa engomada ficou alta do chão com aquela visão repentina. Felício Nogueira perguntou seu nome e muito educado, quis saber como estava sua mãe, a dona Nonata.
A mocinha vinda do Curre, nas brenhas da Guarita e perto da lagoa do Bebedouro, quase derruba o tabuleiro com as roupas. Noca havia atravessado a Parnaíba inteira naquele cair de tarde. Olhou rápido aquele homem fino, bem afeiçoado e vestido com as roupas que ela e as irmãs levaram e engomaram na semana passada. Sentiu até uma grande satisfação pelo que fazia. Foi quando Felício Nogueira abriu o enorme portão e mandou que ela fosse pela calçada até a porta da cozinha.
Lá encontrou a criada, uma negra magra e sem graça, debruçada na mesa cortando uns legumes ou alguma outra coisa de comer, talvez uma torta, pra o jantar na casa de Felício Nogueira. De onde estava deu pra ouvir as duas meninas brincando em algum cômodo na parte da frente. Mas não ouviu voz de mulher. Sem muito o que dizer, Noca entregou o tabuleiro de roupas pra mulher, que na mesma hora seguiu pra dentro de um quarto em pouco depois.
Noca disse que sua mãe, Nonata, lá do Curre, mandava entregar a roupa lavada e engomada da semana. A cozinheira de doutor Felício Nogueira nem prestou atenção naquela puxada de conversa da mocinha. Foi logo tirando do bolso do vestido duas cédulas de dinheiro pra o pagamento do serviço. Noca ainda pensou pedir um copo com água, mas achou melhor não arriscar. Foi voltando por onde veio e já no portão viu a rua larga, as casas enormes com jardins bem cuidados daquela gente rica da Parnaíba.
A volta pra casa foi igual as outras em que veio entregar a roupa lavada e engomada nas casas dos ricos. A areia grossa do chão entrando pelo solado dos pés e batendo no tamanco gasto pelo uso. Noca agora pensava e recordava que esteve muito próximo, dentro mesmo, da cozinha de uma família rica, família que comia tudo do bom e do melhor todos os dias e de vez em quando até uma torta de sardinha em lata. E sua boca encheu de água de desejo de comer sardinha em lata. Ela, a mãe e as duas irmãs certamente nunca haveriam de comer sardinha em lata.
Em casa no Curre, a vida de sempre. Depois de um dia puxado com o ferro de brasa pra frente e pra trás em cima das roupas, ficar no cair da noite na porta da rua e ver de longe o carroceiro Simão, seu vizinho, chegando de um dia de trabalho na praça do coronel Jonas, e os negrinhos seus filhos correndo pra receber um agrado. Dona Cecília, sua mulher, vinha lá de dentro chamando pra que entrassem. Nas outras casas de taipa e baixas indo em direção da lagoa do Bebedouro, aqui e ali uma janela aberta deixando ver de longe uma lamparina acesa. E vindo da beira do alagado aquela zoada dos grilos incomodando a chegada da noite na Parnaíba.
A velha Nonata andava se queixando das vistas. Em chegar a noite e se punha a reclamar que não enxergava um palmo à sua frente. Era um sacrifício alcançar a rede na hora de dormir. O jeito era pedir pra Benedita ou pra Francisca que lhe levassem pra camarinha. Se bem que Benedita, a mais feia das três, naquela altura da noite havera de estar mascando fumo na porta da cozinha. Era mania dela e ninguém que se metesse. O jeito era chamar Francisca.
Francisca. Serena, alva, de pouco falar e muito menos reclamar de alguma coisa. Nasceu pelos poderes de Deus e de São Francisco. Nonata quase morre. Naquela altura da vida de Nonata o marido já havia morrido depois de ser mordido por uma cobra quando pescava numa tarde na beira da lagoa do Bebedouro. Quincas chegou a trabalhar com o seu Cortez no Igaraçu quando a Parnaíba estava com bastante movimento e corria dinheiro no Porto Salgado com as firmas de coco babaçu e cera de carnaúba.
Depois as coisas pioraram e ele foi mandado embora com uma mão na frente e outra atrás. E a agora viúva, Nonata ficou sozinha e criando as três filhas debaixo de toda sorte de dificuldades. Mas prometeu a São Francisco que, quando a filha fosse grande e ela Nonata ainda com sustança nas canelas, havera de ir ao Canindé e entrarem as duas de joelhos até o altar. Mas o tempo foi passando e as dificuldades crescendo. A viúva de Quincas do Cortez teve que trabalhar como engomadeira junto com as filhas, naquela altura já umas mocinhas.
O certo é que entre uma lavagem de roupa aqui e outra ali, Nonata foi sendo conhecida por todas as famílias do centro de Parnaíba. Lavava e engomava. E de quinze em quinze dias as filhas Benedita, Noca e Francisca vinham nos fins de tarde com os enormes tabuleiros de roupas descendo no meio das areias fofas da Guarita no rumo da casa do coronel Jonas Correia, do seu Ernani Prado, do comerciante Antônio Tomás, do doutor Mirócles Veras e outros mais, como o advogado Felício Nogueira.
Um dia já no final de setembro, quando muita gente em Parnaíba já marchava a pé ou ia de caminhão pra o Canindé, uma viagem sofrida e cheia de perigos, Francisca disse pra Nonata que era chegada a hora de ela pagar a promessa sozinha. Iria ao Canindé e na porta da igreja iria caminhar de joelhos até o altar. Havera de pagar a promessa pelas duas. A mãe já estava em fundo de rede e ela, a filha mais nova, que passou aquele tempo todo guardando uma moeda aqui e outra ali pra aquela viagem, não tinha como escapar. Se juntou a umas famílias e outras pessoas e numa manhã foram a caminho do Ceará. Seriam dias e dias dormindo ao relento, parando aqui e mais ali na frente, comendo farofa de carne seca e alguma banana, bebendo água guardada em quando de passagem por alguma povoação. Mas a sorte de Francisca estava traçada. Pelo caminho os romeiros da Parnaíba iam se juntando a outros e aquela multidão ia seguindo. Mas entre aquela gente havia uma mulher que vendo Francisca nova e alva, achou que a moça era mulher da vida. E numa noite enquanto todos descansavam, a mulher possuída por um ciúme sem sentido, correu a mão numa faca e golpeou Francisca várias vezes. Dias depois toda a Parnaíba ficou sabendo que uma das três filhas da engomadeira Nonata, moradora do Curre, havia sido assassinada no caminho de Canindé.
*Pádua Marques - escritor, contista e romancista membro da Academia Parnaibana de Letras - cadeira 24.
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