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Dona Feliciana, a benzedeira da Guarita | por Pádua Marques


Foi um acontecimento como nunca ocorrido em Parnaíba naquele ano de 1943. Tudo por causa do descuido com um fogareiro cheio de brasas dentro de uma balsa de palha e de madrugada na entrada do porto Salgado. A embarcação estava esperando o dia amanhecer e a maré subir, quando um dos tripulantes, por necessidade de se levantar, acabou esbarrando nele e provocou o incêndio. Como estava longe da margem, a balsa pegou fogo rápido sem que desse tempo de alguém acudir.

Com os gritos vindos de terra uns dois homens conseguiram saltar na água, mas um deles, Firmino Fogoió, ainda com sono, não teve a mesma sorte e acabou morrendo queimado. Naquele início de manhã quando umas três canoas levando gente pra socorrer chegaram mais perto já não havia mais o que fazer. Quem se salvou, se salvou. A carga de cera de carnaúba vindo pra Casa Inglesa, foi consumida pelo fogo e Firmino Fogoió estava morto, todo queimado, em carne viva.

Ainda foi levado pra Santa Casa ali perto, mas doutor Cândido já não tinha mais o que fazer. Firmino Fogoió, aquele vareiro de peito largo, nascido do outro lado do Maranhão, que um dia de julho aportou na Parnaíba pra ganhar a vida e trocar de roupa, de pouca idade ainda, uns trinta anos, deixou desvalidos na Parnaíba e no mundo, a mulher Maria da Paz e o único filho, José de Ribamar, o Ribinha. Era a criança mais puxada nas feições ao pai.

Sem a quem recorrer, Maria da Paz, amparada por alguns vizinhos do Curre, teve que ir bater na porta dos grandes da Parnaíba naquele sábado pra que o corpo do marido pudesse ser enterrado. Um aqui e outro mais ali deu uns trocados e uma roupa usada, um terno velho pra que o defunto fosse vestido. E mais algum dinheiro, coisa pouca e não de gosto. Mal deu pra comprar uns maços de vela, cachaça pra segurar a sentinela e pagar uma coisa aqui e outra ali. Era assim mesmo. Pobre só servia pra trabalhar e puxar dinheiro pro bolso dessa gente.

A vida penosa de Maria da Paz em Parnaíba estava apenas começando. Foi bater na porta da tia e madrinha, a viúva do magarefe Pedro de Castro, dona Lurdes, que limpava fato de boi na lagoa do Curre. Embora não fosse tão velha, mal chegando nos cinquenta anos, mas o passadio dela e uns seis filhos era baixo. Não deu pra deixar ao relento aquela mulher, sua sobrinha e afilhada agora viúva, puxando de porta em porta um inocente. O jeito foi trazer pra dentro de casa. Onde dormia um, dormiam dois. Onde comia um, comiam três. 

A Parnaíba dos ricos, dos que tinham dinheiro e andavam de carro, viajavam pra lugares distantes e chegavam se pabulando, davam festas no Cassino e eram agraciados com beijos na testa de padre Roberto Lopes Ribeiro por terem dado dinheiro e terreno pra igreja de São Sebastião, essa Parnaíba estava longe dos Campos, dos alagados dos Tucuns, do Macacal e da Coroa, lugares de gente de pouca altura. Essa Parnaíba que ficasse do lado de lá.

Maria da Paz foi ajudar a tia Lurdes. Botava água nos potes, varria a casa pequena, limpava o terreiro e fazia o almoço. Vez por outra até ajudava na limpeza dos fatos de bois, que depois eram levados ao mercado pelo cunhado da tia, o Genelício, um negro ainda novo, de pouca conversa e que andava sempre com uma faca no cós da calça. 

Um dia desses apareceram e vieram no rumo da casa umas ciganas. Chegaram, encontraram Maria da Paz segurando o menino. Se engraçaram dele, pediram água e assento. Foram logo botando apelido, Cabelouro, por causa do cabelo. Disseram vir de Serrita no Pernambuco e estavam de passagem pra São Luiz no Maranhão e de lá até o Pará. Inventaram coisas sobre a morte de Firmino, que ele era bom marido, que deixou dinheiro enterrado na beira do rio e que o menino Ribinha seria quando crescesse e fosse pra o Rio de Janeiro, um doutor, um advogado e até um almirante da Marinha.

Mal saíram as ciganas, tempo de Maria da Paz colocar o menino no chão e ir lá dentro de casa guardar os canecos em que elas haviam bebido, quando voltou, o filho estava esmorecido, escangotado como se tivesse querendo dormir. Mais frio que água de quartinha. Foi botar na rede e ficou olhando aquela arrumação. Bateu medo e logo foi se apavorando. Chega a tia e madrinha Lurdes e quis saber o acontecido. Contada a visita das ciganas de Serrita, veio a suspeita de ser quebranto, só podia ser! Naquela altura o menino já estava se obrando todo.

Lurdes tratou de mandar um menino seu até a casa de uma comadre lá nos Campos, Feliciana, dada a curar com reza essas doenças ditas pequenas. Muita gente vinha de longe, até de fora da Parnaíba, da Tutoia, dos Araioses, do Bom Princípio, do Cocal, de Granja no Ceará, de Amarração, atrás de cura e ajuda. Os médicos da Santa Casa não gostavam de saber que alguém doente havia procurado dona Feliciana. Renegavam, diziam coisas, passavam carões naqueles pobres infelizes.

Feliciana era uma negra fosca muito magra, de seus sessenta e poucos anos. Botava branco o ano inteiro. Por dentro da blusa se via um rosário de contas muito brancas. Tinha uma voz baixa e pausada. Os olhos muito mansos, os dedos das mãos longos e as unhas encardidas. Talvez por mexer em carvão e no estrume das plantas, lavar roupa e outros que fazer. O rosto era limpo, sem manchas, coisa de muita gente até se admirar, dada a idade chegando e os cabelos meio lisos já apontando uns fios brancos.

Levaram no outro dia bem cedo o menino pra ser visto pela benzedeira. Numa casinha de palha, que mal dava pra caber cinco pessoas na única sala com pouca mobília, dona Feliciana já esperava Ribinha e sua mãe. Depois de examinar a criança e rezar uma reza pra dentro, foi atrás de casa e de lá trouxe um ramo de vassourinha. Rezou e rezou muito. De olhos fechados e de olhos abertos ia tocando na cabeça e nos ombros do menino. Dos pés à cabeça. Em cruz. Molhava o ramo numa bacia com água, repetia
tudo. 

Maria da Paz ali observando aquela arrumação. Mandou que a mãe rezasse com ela um Padre Nosso e três Ave Maria. Antes que as duas terminassem as orações, Ribinha abriu os olhos. Aqueles olhos agateados, iguais ao de Firmino Fogoió. Dali pra mais um pouco o menino já estava era correndo dentro de casa da velha Feliciana. Ribinha agora estava pedindo peito, impaciente como qualquer menino pequeno quando sai de casa. Na despedida, a benzedeira depois de apertar as bochechas da criança, disse apenas que tomasse cuidado com as pessoas do mundo. 

(Conto extraído do livro Os Três Degraus,de Pádua Marques).

*Pádua Marques - escritor, contista e romancista membro da Academia Parnaibana de Letras - cadeira 24. 




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