Chegando junho lá íamos nós os meninos, agora se avizinhando as férias do meio do ano nas escolas, à procura de paneiros ou caixas de papelão ainda em bom estado pra se fazer o boi e sair dançando embaixo como faziam os homens grandes. Porque naquele tempo ainda se achavam paneiros e caixas velhas nas portas das quitandas e dos armazéns lá de dentro da rua.
Agora já não havia mais perigo de chuvas, que naquela altura do ano ficaram pra trás em maio e já se sabia onde haveria de ter aluá. E a gente saía procurando caixa de papelão das grandes, paneiros, pedaços de varas pra montagem do esqueleto de nosso boi. Depois vinha a cobertura, um pano qualquer de chita, limpo, de bom uso e sem buracos ou até uma rede de dormir. Depois eram colocados os chifres, que podia ser um pedaço de vara, um mulambo pra o rabo, feita a pintura, essa última quando se podia,
Mas voltando pra armação, o paneiro era o melhor esqueleto pra um boi de meninos porque era feito de palha de palmeira, daqueles que as embarcações traziam com farinha de puba ou farinha branca, vindas da Água Doce e da Tutoia, das brenhas do Maranhão.
Tinha uma ciência a escolha do paneiro de palha, uma engenharia de meninos. É que o paneiro tinha naquele tempo, pouco mais de um metro. A boca com a sua abertura larga e flexível, se ajustava direitinho, tinha molejo e até facilitava a capa de cobertura e a entrada do dançarino pra dentro do boi. E qualquer um de nós, geralmente o mais afoito e resistente, era o escolhido, o que iria brincar o tempo todo embaixo quando a gente saísse pela rua e aos gritos e cantorias e toques de tambores e maracás de lata.
E aquela brincadeira e cantoria dos meninos chamava gente nas portas das casas e nas quitandas. E às vezes até que de dentro de alguma delas saía alguma pessoa de bom coração pra abrir a burra e nos dar uma cédula de dinheiro, que mais lá na frente iria servir pra compra de bombom ou um pedaço de rapadura, uns traques pra se soltar perto das fogueiras grandes de Santo Antonio, São João e São Pedro.
E os maracás feitos de latas de goiabada, de lata de Leite Ninho, lata de sardinha, cheias de pedrinhas de piçarras, tudo aquilo iria se juntar aos tambores feitos de caixas de papelão mais resistentes e que pudessem aguentar pancada por um bom tempo. E a gente saía no início das noites pelas ruas cantando e o boi dançando e as mulheres e as crianças vinham ver aquele boi de meninos, com seus caboclos reais, o Pai Francisco, o Amo, o Folharal e a Catirina.
A Catirina no boi de meninos era a personagem mais difícil de se conseguir. Tinha que ser um menino sem vergonha de se vestir de mulher e de pintar a cara, colocar um pano na cabeça. Mas acabava dando certo naquele que também mostrava alegria e improvisação. Aí vinha o Folharal, seu companheiro de estripulias, fingindo e forçando grossura na voz, armado com uma bola de meia pra assustar e afastar as pessoas, a figura mais temida pelos meninos pequenos e as moças.
Era se ouvir longe uma batida de tambores e caixas no início da noite e todo mundo já sabia reconhecer que era um boi de meninos. E os apitos, as vozes finas e gritantes com algumas mães ou pais até acompanhando aquele cortejo, lá se danavam pelas ruas dos bairros mais próximos, procurando contrato pra dançar uma meia hora nalguma porta de casa ou quitanda, enquanto o boi dos homens feitos, mais solene e rico, mais bem acabado vinha em outro dia ou mais tarde, principalmente nos dias consagrados aos três santos de junho.
E os donos da casa, as mulheres, os vizinhos, as moças, os velhos de barbas por fazer, naquelas noites de junho eram de ficar ali, de queixo caído, vendo aquela destreza e alegria dos meninos, a cantiga de Pai Francisco, a dança, os rodopios do boi de paneiro. E as crianças pequenas querendo correr com medo do Folharal ou até por maiores cuidados das mães, vinham tocar nos chifres daquele objeto esquisito. Passada a dança e pago pela apresentação, sempre uma cédula de pequeno valor, o boi saía, ganhava a rua com seus caboclos reais, seu Pai Francisco, o Amo, Folharal e a Catirina. Iam à procura de um novo terreiro de casa, um lugar pra sua nova exibição. Antes das dez da noite, era pra estar todo mundo em casa e dento da rede. E o boi de paneiro iria dormir lá nos fundos da casa ou encostado na parede da cozinha pra o quintal. Iria noutra noite escura sair pelas ruas levando barulho e alegria enquanto durasse o mês de junho.
*Pádua Marques - escritor, contista e romancista membro da Academia Parnaibana de Letras - cadeira 24. Mais AQUI
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