Foto: Reprodução Google |
Conheço de há muitos anos “seu” Nordeste. Moramos na mesma rua. Só que ele e os filhos moram defronte a mim, portanto, do outro lado. Ele teve a sorte ou a infelicidade de ter botado no mundo uma família grande, nove filhos. Nove filhos. Dê por vista nove filhos entre machos e fêmeas. Mas desde que o conheço sempre foi vivendo na dificuldade. Certo que com alguns deles teve menos trabalho até hoje. Mas nunca vi daqui de casa qualquer sinal de desavença. E olhe bem que tiveram e tem motivos.
Duas fêmeas e sete machos. Bahia, a mais velha, já nasceu mandando nos outros. No bom sentido, certo. Sempre foi dessa maneira que estou lhe contando. Bahia? Tá bem de vida que só ela! Assim feito “seu” Nordeste, teve uma penca de filhos e que já lhe deram netos. E foi tanta gente, mas tanta gente que se espalhou pelo mundo sendo até difícil de juntar. Artistas, empresários, políticos, comerciantes, industriais e outras atividades. E artista é o que não falta. Gente que está de cabelo limpo, tal e qual se falava no meu tempo!
Depois na fila de filhos de “seu” Nordeste vem Sergipe. Encostado de Bahia. Dizem até que quase foi emendado! Sergipe, esse menino em tamanho, mas gigante e valente, soube tirar proveito de ser vizinho da irmã mais velha e hoje está bem de vida. Tem seu sustento em parte do terreno que adquiriu por herança de frente pro mar. É afoito que nem filho de mascate. Hoje se sustenta e sustenta muitos filhos, netos do velho Nordeste.
Alagoas. Talvez um dos mais geniosos filhos de “seu” Nordeste. Mas que não se entenda a expressão de genioso dada por causa de algum feito extraordinário, alguma invenção destas tomadas dentro de escola quando se é menino. Esse genioso de Alagoas é devido à valentia, a força de seus filhos, a destreza de alguns deles pra ciência e até na política. Sim senhor, até na política!
Nunca ouvi dizer que fosse menino de levar desaforo pra dentro da casa de “seu” Nordeste. Alagoas? Apanhasse na rua, apanhava em casa. Então foi nessa sentença que criou fama de valente desde menino. Adulto, tem seu ramo de vida e de sustento. “Seu” Nordeste tem por ele muita afeição. Gosta de ouvir suas histórias e até seus conselhos.
Alagoas tem filhos grandes e grandes filhos. Escritores, juristas, políticos, cantadores de repente e de embolada. Gente que se mete a discutir ciência até no meio dos grandes lá pelo estrangeiro E tudo isso deixa hoje o velho Nordeste orgulhoso com a mão no queixo e de boca aberta. Filhos que lhe emprestam satisfação de pai e ao velho Nordeste, avô, uma nesga de fama: ter dado à sua gente esse tempero de fruta doce do sertão de sol inclemente e ao mesmo tempo da beira do mar salgado.
Mas vem na lista outro filho de “seu Nordeste que é difícil esquecer e não dar relevo, um homem chamado de Pernambuco. Comprido que nem ele. Galalau, como se chamava no meu tempo. Alegre com sua gente da porta do mar e calado da porteira dos canaviais pra dentro. E igual aos outros filhos do velho Nordeste. Foi menino valente e hoje, homem feito, seguro naquilo que fala e no que faz. Tem crescido muito e muito
até tem dado aos outros irmãos menos remediados. Tem essa particularidade. E é esse jeito de ajudar os irmãos de pouca fortuna que deixa “seu” Nordeste se pabulando na porta de casa. Coisa de dizer que Pernambuco se fosse uma mulher tinha tudo pra ser uma grande mãe.
Paraíba. Paraíba é menina e é feito a menina dos olhos de “seu” Nordeste. Desde pequena foi determinada. Dessas meninas que a gente jura que nunca vai tomar juízo. Mas crescida, e olhe que eu nem vou encompridar conversa, soube dar destino aos filhos que achou de ter e de criar. Sabe a Paraíba dar essa força de opinião a todos aqueles que estão sob sua guarida. E olhe que passou por maus momentos no passado. Chegou a presenciar brigas e crises entre os seus filhos dentro de casa!
Aí vem Rio Grande do Norte. Desde menino, e agora homem, sempre teve boa estatura, sempre silencioso. Mora bem no canto da rua de “seu” Nordeste. Tem seu ganho de vida. Tem sua história de luta. Tem filhos que lhe deixam orgulhoso e ao velho avô mais orgulhoso ainda. Eu bem que poderia ficar aqui desfiando elogios para Rio Grande. Mas sei que ele não pede e nem precisa disso.
Ceará. Esse é o mais afoito e viajado de todos os filhos de “seu” Nordeste. Passou por poucas e boas no passado e, certo que alguns de seus filhos ainda passam por necessidade de vez em quando. Mas Ceará já correu o mundo inteiro. Conhece do Pólo Norte ao Pólo Sul. Tem fama de bom comerciante e agora deu para aplicar o dinheiro ganho no turismo. E tem dado certo. O menino está de cabelo limpo. Mas como é natural e assim como dizia minha santa mãe, os dedos das mãos não são iguais. E nem poderiam ser. Os dois filhos de “seu” Nordeste que vivem na maior penúria, Piauí e Maranhão, moram no final da rua. Chamar aquilo de rua é como se diz, força de expressão. Na verdade tudo aquilo é um imenso terreno sem tamanho, de tão grande que é.
O primeiro dos dois, Piauí, nunca teve quem lhe desse um dia de trabalho. Também nunca foi muito de procurar ter uma ocupação. O mais que fez foi ter se iludido no passado com uns estrangeiros que andaram por aqui. Gente que tirou dele o pouco que tinha e depois foi embora deixando o pobre mais pobre ainda. E é desse jeito que vive até hoje o Piauí, filho de “seu” Nordeste. Praticamente vive de uma aposentadoria arranjada.
Os filhos, ao contrário dos filhos de seus irmãos, pouco ou nunca se destacaram em nada que fosse. Vive endividado correndo atrás de agiota. Pobre Piauí, filho de “seu” Nordeste! Tem passado é baixo de uns anos para cá. Mas não tem a quem culpar pela sina de ser um dos dois mais pobres. Foi de nunca ter tido muita iniciativa. Sempre andou empurrado. Agora está do jeito que está.
E por fim vem Maranhão, o último dos filhos de “seu” Nordeste. Também o último morador da rua. Pouco fez e pouco faz pra sair da miséria em que vive. Ele e os filhos.
Dá pra ver pela cara dos filhos, principalmente as crianças. Dá pra ver todas elas passando todo tipo de necessidade. Os filhos de Maranhão e netos de “seu” Nordeste não têm escola que preste e nem tem aonde procurar saúde quando ficam doentes. E o que se vê é esta situação de abandono e de miséria dentro de uma família tão grande como a desse velho de cabeça branca, pele enrugada, pés dentro de chinelo de couro cru e vestido com uma camisa de tecido barato. Velho que nesta altura da vida tem de regatear até água do pote e de tomar banho porque senão há de fazer falta.
Aonde já se viu uma coisa dessas? Em que situação, em que ponto da vida chegamos?
E numa tarde dessas, me lembro como se fosse hoje, depois de um dia de sol quente, entre triste e envergonhado, “seu” Nordeste, sentado como de costume na cadeira de plástico na calçada, rodeado por alguns dos netos e vendo passar pra missa das seis, aquela ruma de velhas desdentadas puxando pela mão uns meninos magrinhos, disse dos filhos mais sofridos aquilo que um pai nunca deveria e nem gostaria de falar:
– Estes dois últimos não deram pra nada…
MARQUES, Pádua.
*Pádua Marques - escritor, contista e romancista membro da Academia Parnaibana de Letras - cadeira 24.
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