Ninguém chega à velhice com todos os dentes de leite. Essa é uma das mais certeiras verdades ditas, agora quando estamos entrando no conhecido inverno de nossas vidas. E lembrar dos primeiros dentes e dos nossos primeiros medos é alguma coisa tão distante e doída que mais parece que nunca vai passar.
Eu, não diferente das outras crianças do meu tempo, devo ter trocado os dentes de leite por volta dos seis, sete anos. Foi antes de entrar na Escola Técnica de Educação Familiar, a escola pra os filhos de ferroviários, na avenida Presidente Getúlio Vargas, onde hoje funciona um posto do Bradesco.
Minha primeira professora foi Evangelina Silva, filha do doutor João Silva Filho, moça elegante e que sempre usava um vestido tubinho e tinha um Gordini, carro muito bonito pra época. Ela gostava muito de mim porque eu desarnei logo, aprendi a ler rápido e em seis meses troquei de classe. Ganhei como prêmio um livreto com uma estória de Tom & Jerry.
E naquele tempo, lembro bem hoje, entre medroso e curioso, como eram as crianças do meu tempo, fiquei a imaginar como seria aquele momento extraordinário quando descobri que trocaria de dente. O chato de a gente perder os dentes de leite e ficar banguela por um tempo é que ninguém vai ter noção de quando devem surgir os novos e de que tamanho e formato serão.
E é nesse tempo de nossas vidas que o sofrimento da chateação vem junto com os apelidos vindo de todos, desde os de casa, aos da rua da nossa casa e os da escola.No meu tempo de menino vinha da rua e da escola, lugares de nossa maior presença depois de dentro de casa. Porteira, trave, banguela, caverna e outros tantos apelidos. Porque eu sou de um tempo em que raros eram os meninos que não tinham apelidos.
O chato de se perder os dentes na infância é a gente querer dar gaitadas e lá está a nossa boca sem um cristão de dente da frente que seja. Querer jogar bola e ter medo de levar um chute e se ferir, sair sangue. Nos tempos de escola e sem dentes a gente ficava com vergonha de falar perto uns dos outros. As meninas, pelo menos as meninas de meu tempo, tinham essa mania de cobrança.
Mas essa despedida dos dentes de leite nunca foi uma coisa fácil de aceitar. Lá um belo dia quando a gente ao menos esperava, um deles, justo nos da frente, aparecia mole. E nossa mãozinha de criança ajudava um pouco pegando aqui, torcendo ali. Corria a contar pra mãe, pra tia, pra irmã. Todo mundo vinha ver de perto nosso primeiro dente de leite se aprontando a deixar a nossa boca. E dentro de pouco tempo a operação de arrancar era preparada.
No meu tempo era assim. A mãe pegava um pedaço de linha de costura, marca Círculo, e amarrava o dente abaixo da gengiva. E a gente ali se pelando de medo e morrendo de curiosidade pra logo em seguida correr até um espelho e ver como deveria ficar banguela e coisa e tal. O movimento da mão de nossa mãe era firme e rápido. Em segundos o dente estava na palma de sua mão. Nosso coração nesse momento batia a mil por segundos.
Depois a gente corria com o dente de leite arrancado na mão e ia direto até o canto da casa e se punha a dizer: Mourão, Mourão, pega teu dente podre e me dá o meu são! Mourão, Mourão, pega teu dente podre e me dá o meu são! Era e tinha que ser desse jeito, sem errar. E mais depois minha mãe era de trazer um copo com água de sal e a gente lavava a boca. Era pra limpar a cavidade e estancar o sangue. Calcule só,nem saía sangue do dente de leite!
Até ali tudo bem porque ainda não havia saído até a rua e ser visto pelos amigos de brincadeiras e os da escola. E na escola é que seria a segunda parte de nosso sofrimento por ter perdido o dente de leite. Por outro lado, a troca deles era, mas a gente mal percebia isso, sinal que a gente estava crescendo a ficar rapazinho e dentro de mais um pouco seria um homem.
Mas os dias iam passando e aos poucos, tanto dentro de casa quanto fora, o mundo ia se acostumando com nossa cara nova, ao abrir a boca dando uma gaitada boa, sorrir de leve de algum acontecido próximo e tudo o mais. E mais dia menos dia, quando um dia menos se esperava, ao fazer caretas olhando no espelho ao escovar os dentes que ficaram, aparecia a pontinha de um dente novinho e agora mais forte e pra vida toda.
*Pádua Marques - escritor, contista e romancista membro da Academia Parnaibana de Letras - cadeira 24. Mais AQUI
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