Tião Saracura, Ribinha e Beija Flor estavam ali de cócoras naquela manhã de janeiro em cima dos alicerces de uma construção e olhando pra o escritório da Booth Line na rua Grande, sem ter ninguém que pudesse dizer o que havia ocorrido pra empresa estar fechada a uma hora daquelas. Mas veio de lá da esquina e dos lados da Casa Inglesa um sujeito com cara de trabalhar ali perto dizendo que a empresa havia fechado suas portas em Parnaíba e era coisa definitiva.
Não era o tipo de notícia que os três estivadores queriam ouvir naquele janeiro de 1947. Como é que podia, uma empresa que estava na Parnaíba há mais de trinta anos, assim do dia pra noite fechar as portas e deixar os trabalhadores no olho da rua, sem nada, com as mãos abanando? Mas havia um motivo e que não era de agora, pelo que se ouvia falar pela boca dos entendidos. A dificuldade de navegação nos canais do rio Parnaíba obstruídos e o porto de Amarração sendo utilizado só quatro meses no início de cada ano.
Tião Saracura, nem negro e nem branco, estivador e pai de seis filhos, sendo que três mortos ainda anjinhos, morava numa casinha de barro na Coroa e trabalhava como estivador há pelo menos uns dez anos pra Booth Line na rua Grande. Agora sem serviço e batendo cabeça pra arranjar alguma coisa pra fazer, com o risco da mulher estar prenhe de novo, ia ter que correr pra o lactário de seu Roland Jacob, na rua do Riachuelo, todo dia buscar leite pra os filhos.
Ribinha era outro estivador que estava na mesma situação. Rapaz mais novo, vindo de Camocim no Ceará, casado de pouco, meio escuro, barba por fazer, de boa altura, a mulher estava prenhe de quatro meses e a mãe dela no fundo de uma rede, caduca, andando e comendo pela mão dos outros. Um dia a sogra acordou no meio da noite com falta de ar e desde aquele dia nunca mais se levantou. Nem na Santa Casa haviam dado jeito.
Beija Flor, o terceiro estivador a ficar ali de cócoras e em cima dos alicerces da construção do prédio da Associação Comercial, coisa de seu Zé Mendonça, de frente pra Booth Line, até que pouco levava a sério aquela preocupação toda. Vindo rapazinho de João Peres no Maranhão pra trabalhar no porto Salgado, ainda era solteiro. Veio corrido depois de bulir com uma moça e de ser ameaçado de morte pelo pai e os irmãos dela. Tinha agora idade de pouco mais de trinta anos, almoçava nos botequins do Mercado Central e o pouco ganho era gasto com jogos de dama e de baralho. Dormia na casa de um conhecido nos Tucuns.
Tião Saracura, que tinha um sestro de chupar os dentes, coçava a cabeça e esfregava os olhos como se quisesse tirar dos cabelos uma resposta. Como podia uma coisa daquelas? Lembrava e contava a história dele e dos filhos que haviam morrido ainda anjinhos, sem batismo. E ele vivia só de casa pra frente da Booth Line, carregando e descarregando mercadorias. Nem uma roupa tinha que prestasse! A mulher, coitada, coberta de necessidades arrastando aqueles meninos o dia inteiro. E agora mais aquela, a firma inglesa, pelo que se falava, foi embora por causa da guerra.
Passa no rumo do porto Salgado um rapazinho bem parecido, vestido como sendo do Exército e com uma bolsa de escola debaixo do braço. Era um estudante do Instituto São Luiz Gonzaga, de seu Ozias Correia. Por certo filho de gente rica. Ia ganhando o rumo da Coroa acertar conta nalgum cabaré. E os três estivadores ficaram olhando e conversando. Que futuro podia ter agora a Parnaíba com a Booth Line fechando as portas? A estrada de ferro continuava seguindo pra dentro, no rumo de Piracuruca, muita gente enriquecendo, outros quebrando e depois jogando a culpa na guerra. Se a Booth acabou, as outras também iam acabar.
Um a um os agora desempregados estivadores foram saindo, batendo a poeira no fundo da calça e tomando rumo ignorado. Aquilo era vida? Mas quem sabe amanhã, de repente vinha outra empresa e retomava tudo, vendia as máquinas, pagava os estivadores, o pessoal do escritório e aí a coisa voltava pra os eixos. Parnaíba precisava de alguma coisa grande e pelo que parecia agora essa coisa estava ainda longe. Dentro de pouco a rua Grande foi ficando silenciosa no rumo do porto na hora do almoço.
*Pádua Marques - escritor, contista e romancista membro da Academia Parnaibana de Letras - cadeira 24.
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