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A guerra acabou nossa riqueza | por Pádua Marques

Calça de linho branca, camisa azul listrada de mangas compridas e a inseparável bengala ali perto da espreguiçadeira de pano listrado, os pés dentro de um chinelo de couro cru, Berilo Ferreira de Miranda estava em mais um dia de descanso na calçada de sua casa na rua do Riachuelo, à pouca distância da praça da matriz de Nossa Senhora da Graça, em Parnaíba, esperando algum conhecido rico ou pobre que lhe desse atenção pra uma conversa. 

Daqui mais um tempo apareceu lá de dentro um menino de seus oito anos, quando muito, negrinho, limpo, de nome Olegário e filho de sua criada. Vinha trazer o primeiro dos muitos canecos de água fresca pra o velho comerciante de mais de setenta anos beber e ficar olhando a rua naquele movimento de cabeça pra direita e pra esquerda. Lá dentro de casa estavam a mulher Colombina, a filha única Olímpia, moça velha e a cozinheira, copeira e lavadeira Veneranda, todas entretidas nos do que fazer do dia. 

Berilo Ferreira de Miranda foi comerciante de arroz no porto Salgado pelo lado dos Tucuns por cinquenta anos tendo largado o ponto e passado pra um sócio, filho de gente de sua terra, o Mucambo, no Buriti dos Lopes, quando começou a sentir a saúde indo embora e a tristeza incomodando. Era de conhecer todo mundo e todo mundo conhecer ele. Sabia quem era bom e quem era ruim nas famílias importantes de Parnaíba. Quem prestava e quem não prestava.

Primo legítimo de Colombina, sua mulher, teve com ela a única filha, Olímpia, que quando menina foi uma das primeiras estudantes do Colégio das Irmãs. Quando foi ficando moça, se engraçou de um caixeiro viajante, Eliseu Rodrigues, mas que a coisa de casamento não foi pra frente. E foi quando passou a paixão e os cuidados de mãe pra o filho de Veneranda, Olegário. Ia com ele pra tudo quanto era lugar. Missa, procissão, mercado, passeio e até no cinema do Miguel Carcamano. 

Até botou o diabo do negrinho no catecismo. Ele já sabia rezar o Pai Nosso e o Creio em Deus Pai. Olegário obedecia a Olímpia em tudo. Dia de Natal saiam eles os dois pra praça da Graça ver as vitrines da Casa Cristino e na volta pra casa traziam um ou dois presentes. A mãe verdadeira, Veneranda, ficava com ciúmes, mas engolia o choro e quando sozinha ralhava com o filho.

Naquela conversa com um conhecido, o sapateiro Euclides, morador do Macacal, disse que em mais de cinquenta anos vendendo arroz nos Tucuns, nunca foi de roubar no peso uma grama que fosse, na hora de pesar mercadoria, mas conhecia gente que agora estava rica e poderosa, que se fez nisso. Ele se calava, mas sabia quem era. Também nunca foi de ter paixão por política, mas até que uns comerciantes amigos quiseram ele como intendente e sucessor de doutor Carlos Picanço.

O velho comerciante de arroz encompridava conversa, mandava o menino trazer café e um assento pra Euclides e ia dizendo agora que estava preocupado com essa guerra na Europa. Ficou sabendo por uns conhecidos. Não via com bons olhos aquele alemão, da Condor, Werner Shluepmann dentro de Parnaíba, almoçando e jantando em casa de gente de bem. E que não entendia desde há muito tempo aquela inquisição, aquela intriga, desavença entre os homens mais ricos de Parnaíba, os franceses e ingleses por causa do preço, qualidade, controle e vendada de cera de carnaúba. Intrigas que acabaram levando comerciantes honestos, no seu caso, a largar o negócio de arroz e outros gêneros porque estavam sendo até perseguidos. 

Teve até morte, tocaia de empregados uns com os outros entre os armazéns e as docas no porto Salgado, no caminho pra os Tucuns, muito sangue derramado. Mas isso era o que ouvia falar. O seu medo era de agora e daqui a pouco, com aqueles aviões passando em cima da sua cabeça, Parnaíba não entrasse na guerra, se perdesse tudo, os ricos ficassem com uma mão na frente e outra atrás, o dinheiro trocasse de mão. E as vendas, as exportações de cera de carnaúba e de óleos, que já estavam ruins, poderiam ficar piores! 

E ele, Berilo Ferreira de Miranda, descendente de gente importante que abriu caminho na Parnaíba, tendo que no fim da vida ver aquilo! Logo ele que alcançou tempos bons e ruins no ramo de comércio, que em quantas vezes abriu a gaveta pra ajudar nisso e naquilo. Até naquela engenharia maluca de Zeca Correia de abrir o canal do São José, pra melhorar a navegação vinda de Tutoia até o porto Salgado. Fora outras ajudas que deu a fundo perdido. 

A mesma gaveta que se abriu pra dar uns trocados pra filha Olímpia sair com o negrinho e afilhado Olegário até o cinema de Miguel Ferreira, o Carcamano. Agora era até malvisto pelos vizinhos da rua do Riachuelo e que viviam de cara fechada. Espalhavam por tudo quanto era canto de Parnaíba que Olímpia, a filha, que não gostava de gatos, vivia dando veneno pra os bichos, enchendo o quintal de armadilhas, até nos corredores da casa, na cozinha, perto das gaiolas dos curiós. Muitos bichos já haviam morrido. 

Escritor Pádua Marques
Agora se inchava dentro da cadeira preguiçosa gesticulando, parecendo que ia levantar voo e visto e admirado por Olegário, o negrinho que, por ele haveria de ser padre e dar gosto dentro de casa. Se ele, Berilo, tinha chegado até ali, naquela idade de mais de setenta anos, era à custa de, todo dia, no cair da tarde que Deus dava, Veneranda trazer pra ele na sala uma tigela fornida de sopa, um caldo de farinha branca temperado com sebo de gado, aquele tutano forte, coisa comprada no Mercado Central, lá mais embaixo, decerto trazida de sua terra, o Mucambo.

(*) Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras é  jornalista, romancista e contista. 






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