Reprodução/divulgação |
Começo dizendo que o título do filme engana. Não há exaltação a religiões ou intervenções sobrenaturais que justifique o termo "milagre". O que vemos é apenas a vida com suas injustiças, intolerâncias e pré-julgamentos característicos dos humanos. Mas há também a empatia, a solidariedade, a inocência, resiliência e a alegria de acreditar no amor. O pior e melhor da humanidade.
Piegas?
Sim, mas e daí?
Para quem está pouco acostumado a ver produções que não têm o selo de Hollywood, é bom lembrar que o longa turco “Milagre na Cela 7”, de Mehmet Ada Öztekin, é uma refilmagem tocante de um sucesso sul-coreano de 2013. O original dava ênfase à comédia. O atual é mais sensível e, por isso mesmo, não falta quem o rotule de dramalhão.
Ainda assim, o boca a boca vem funcionando melhor do que a nota dos críticos.
Não é difícil entender a reação positiva do público.
Em um período em que o mundo se sente confinado e no qual estamos, muitos de nós, isolados em casa para evitar um inimigo invisível, um pouco de catarse cinematográfica funciona que é uma beleza para aliviar a ansiedade dos tempos cada vez mais líquidos.
Deixar a emoção fluir expurga a tristeza e a desesperança.
Fato é que fica difícil não chorar, e rir ao mesmo tempo, com o filme que se tornou rapidamente um dos mais vistos da Netflix, nos últimos dias. Está no Top 10 há semanas.
Mas do que se trata afinal?
Dois clássicos que nos fizeram chorar: "A Vida é Bela" e "À Espera de Um Milagre" |
Quem viu "A Vida é Bela" (1997), "À Espera de um Milagre" (2000) e "Um Sonho de Liberdade" (1995), provavelmente vai gostar, se sentir tocado e, com certeza, chorar ao assistir "Milagre na Cela 7" (2019).
A trama, bom avisar, não tem apuro técnico ou roteiro tão bom, como o das obras-primas (citadas acima), mas usa o mesmo fio condutor: a emoção. O elenco, embora desconhecido do público ocidental, é uma grata surpresa.
Começando com o ator Aras Bulut Iynemli e sua extraordinária entrega ao papel do deficiente mental Memo. Sua atuação se mantém entre a inocência infantil e a sensibilidade extremada. O ator não só convence o espectador como demonstra profundo respeito por pessoas que vivem essa condição especial na vida real. Comove!
Memo passa seus dias cuidando de ovelhas e sua idade mental beira a de uma criança de seis anos, a mesma de sua filha Ova (Nisa Sofiya Aksongur). Os dois vivem sob olhar cuidadoso de Fatma (Celile Toyon Uysal), uma velha senhora. Juntos, mãe, filho e neta vivem numa comunidade rural da Turquia e são felizes com o que têm.
Para Memo, não há nada melhor no mundo do que ver sua filha sorrir. É com ela que passa os melhores momentos no quintal de casa. Para ele, o mundo inteiro cabe naquele pedacinho de chão. Única com os pés na dura realidade, cabe à avó de Ova tentar explicar que, mesmo diferente, seu pai não é um louco a ser temido ou humilhado pelos coleguinhas da escola. "Ele apenas é especial".
A figura materna está ausente. Em uma breve conversa, Fatma explica à menina que sua mãe "virou anjo". Essa explicação rasa, aliás, dá margens à formulação de teorias e mais teorias após a última cena do filme ser exibida.
A vida "bela" dos três muda radicalmente quando o homem-menino é injustamente acusado pela morte da filha de um general de alta patente. A verdade é que Memo brincava com um grupo de crianças, quando a garotinha sobe em um penhasco e escorrega. Ele faz tudo para socorrê-la, mas não consegue. De longe, entrincheirado em velhas ruínas, um desertor do Exército turco vê tudo. Como está escondido e em fuga, nada faz ou diz para desfazer o mal-entendido.
Diante da tragédia consumada, movido por ódio e dor, o general busca sua vingança. Manipula jurados e oficiais para condenar Memo à forca.
Levado à prisão local, Memo conhece então os prisioneiros da Cela 7. Como se sabe, o cárcere tem suas próprias leis. Não há perdão para "assassinos de criancinhas". Humilhado, torturado e sem ter ideia do que está acontecendo, ele só pede uma coisa: quer voltar para casa porque "precisa cuidar de sua filha Ova".
Não demora muito para que os presos da Cela 7, especialmente Askorozlu (Ilker Aksum), entendam o óbvio. Memo não deveria (ou merecia) estar ali. Era claramente inocente.
Na prisão, aquela criança grande divide seu tempo entre escrever cartas para Ova (que nunca serão entregues) e divertir a todos com sua inocência desconcertante. Certa vez, chega a arriscar a vida para salvar um companheiro numa briga interna.
Com isso ganha a solidariedade do grupo e desperta a compaixão do diretor da cadeia Nail (Sarp Akkaya) e do guarda Faruk (Deniz Celiloglu).
Os dois divergem das ordens superiores e com base no depoimento de Ova descobrem que há uma testemunha capaz de livrar Memo da pena capital. Mas, embora de posse desses elementos, os dois pouco podem fazer para livrá-lo da pena. Falta-lhes a caneta que poderia assinar sua ordem de liberdade.
E a caneta de quem detém o poder, como sabemos, quando se encontra nas mãos de quem vive dominado pelo ódio, geralmente, ignora a Justiça.
Diante do incontestável, resta aos colegas um plano audacioso: levar Ova, clandestinamente, para visitar o pai na Cela 7. Antes disso, numa tentativa frustrada de ver o pai, a menina se prende ao muro e grita: "Lingo, lingo... Papai" (imitando o som de um tilintar). "Garrafas, Ova", responde o pai, sem acreditar que está ouvindo a filha. A brincadeira cifrada de adivinhação dos dois é de cortar o coração. Ambos usam uma linguagem que muitos, por mais letrados que sejam, jamais irão entender.
Voltamos ao plano que, finalmente, é colocado em ação. Ova consegue entrar, convencida que tudo é uma grande brincadeira. Assim como em "A vida é bela", o cárcere sujo e deprimente a ela parece o cenário de uma "festa do pijama". Afinal, estão todos em suas camas e não se furtam a contar para Ova - feito crianças mal-criadas - qual foi a "doença" que os levou a ficar ali, "afastados" até ficarem "bons".
Um a um, eles desfiam seus rosários de crimes usando metáforas, enquanto se dão conta de como poderiam ter feito escolhas diferentes. Como poderiam ser pessoas melhores.
Talvez seja esse o "milagre" da história... Um fenômeno que independe de credos, mas é capaz de sacudir e tirar tudo do lugar. Amor. Do tipo que não pede nada em troca e nem tem limites.
Amor não por uma pessoa, mas por muitas, não importa que pecados elas carreguem.
Tudo ia bem, até a realidade bater à porta da Cela 7.
Hora de encarar o mundo e seus "monstros". E aqui a trama entra em seu trecho mais sombrio. Duro feito os coturnos que, muitas vezes, seguem marchas e ordens às cegas.
A forca é montada. As ordens precisam ser cumpridas. Ou será que não?
É preciso ir em frente para conferir.
Após 2 horas e 12 minutos, chegamos à cena final. E para muitos ela em si basta! Pode ser considerada um desfecho bem resolvido. Para os mais atentos, no entanto, a sequência escreve interrogações no lugar do tradicional "The End". Será mesmo que os caminhos que levaram Memo à Cela 7 não se cruzaram antes? Vai saber...
O certo, é que os mais sensíveis precisarão de uns lencinhos extras para testemunhar esse "milagre".
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