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O Cão Novo - por Pádua Marques.

Foto: Parnaíba das Antigas
Apolônio veio de madrugada bater umas quatro vezes na porta de sua mãe, a negra Francisca, no distante Catanduvas. Naquela escuridão de meter medo, a irmã Maria do Carmo veio atender trazendo a lamparina na altura dos olhos. Aquilo era hora de bater em casa de cristão, parecendo malfazejo? Foi entrando e foi procurando ver pelas frestas das janelas e da porta se havia algum vulto lá fora.

Depois de dar por certo de que não havera de te sido seguido desde o porto Salgado, o negro de boa estatura, mal chegado nos trinta anos, preto que nem breu, ainda com a faca na cintura, correu no banco de pote e bebeu água. Francisca nem se deu por perguntar o motivo daquela indesejada visita e mais ainda àquela hora do dia. Vai ver, calculou que Apolônio vinha de alguma patuscada ou de algum festejo pelas redondezas, na Amarração ou no Portinho e acabou passando pra ver como estavam a mãe e a única irmã.

Fazia tempo que ele tinha se largado pros lados da Parnaíba trabalhar na estiva, descarregando mercadorias das barcas vindas da Tutoia. Era onde ainda havia algum serviço pra gente da sua igualha. Pouco ganho, uns vinténs por semana, mas era o muito que se oferecia. De sol a sol, carregando e descarregando cera de carnaúba, babaçu, tucum, jaborandi. Apolônio estava estropiado pela corrida e depois de colocar de volta os pés dentro dos chinelos foi que sentiu que havera de ter nascido de novo naquele dia 28 de agosto.

Fazia tempo que era estivador no cais do porto Salgado, coisa de uns dois anos. Não tinha patrão. Estivador não tinha patrão. Patrão era pra quem trabalhava em escritório, detrás de balcão, estudado na Caixeiral. Ele, Apolônio, era de vela e de remo, sabia de cor e salteado, de trás pra frente e de frente pra trás quem era dono desta ou daquela carga, quem era o comandante do barco e pra onde essa carga era de destino naquele pedaço de lugar sempre cheio de gente. Mas a tentação de ganhar alguns vinténs a mais fez com que aceitasse fazer um serviço daqueles.

Quando se aproximou a madrugada e o silêncio foi tomando conta do porto com suas embarcações prontas pra largarem no outro dia bem cedo, ele Apolônio, instruído de tarde pelo comerciante Altamiro Borges, o Miro Borges, ateou fogo na barca Princesa de São José de Ribamar, carregada de pó de cera de carnaúba, com destino a Tutoia e que lá descarregaria pra outro navio maior com destino aos Estados Unidos da América do Norte. Carga boa e vultosa, uns duzentos sacos. O fogo acabou não consumindo toda a carga, mas os danos à embarcação foram muito grandes.

Toda a parte da Parnaíba que tinha o porto Salgado por perto passou a madrugada acordada vendo, comentando e aumentando o ocorrido. Gente que veio dos Tucuns, Ilha de Santa Isabel, do Macacal, dos Campos, da Coroa. Tudo querendo saber quem teria sido o malfazejo que tocou fogo naquela fortuna e mais fazendo pra aumentar as desavenças entre os exportadores de cera de carnaúba. Fazia tempo que os ingleses e franceses vinham se estranhando. Capaz de a qualquer hora sair até morte! Aquela inquisição parecia que nunca teria fim!

E os pequenos comerciantes, sempre os mais fracos, tinham que pender pra esse ou aquele lado, tomar partido naquela briga em que estavam em jogo as grandes fortunas da Parnaíba. Os negócios de Benedito de Castro Rodrigues e de seu sócio francês Antoine Barres, tinham sido e eram ainda os mais prejudicados desde quando essa briga sem fim começou. Uma hora era o afundamento de uma embarcação com sacas e mais sacas de pó de cera de carnaúba. Outra hora era um incêndio numa caldeira, no porão de uma barca. Mais adiante era uma carga que era molhada de propósito dentro de um armazém.

Benedito de Castro Rodrigues era um velho com mais de oitenta anos. Insistia em ir pra frente do armazém Castro & Barres todo santo dia que Deus dava, mesmo tendo a presença do sócio francês e mesmo tendo ficado aleijado da cintura pra baixo depois de uma queda quando tomava banho numa cachoeira dentro de sua propriedade no Buriti dos Lopes. Ia logo cedo carregado nas costas de um rapaz, forte e alto. Quem via aquela cena triste do velho escanchado já nem se impressionava. Ficava por lá o dia todo e só voltava no meio da tarde.

No armazém, empregado não tinha sossego e muito menos pegava em dinheiro. O freguês pedia e era atendido sempre sem que o caixeiro desse palpite. Uns dois rapazinhos com os colarinhos das camisas encardidos, de pouca conversa, vindos do Maranhão e que ainda estavam estudando na Escola Técnica de Comércio União Caixeiral, na rua Grande. O armazém vendia de um tudo. Ficava logo depois, um pouco acima da firma Franklin Veras e do mesmo lado da Casa Inglesa, subindo a avenida na direção da estação da estrada de ferro.

Antoine Barres era um francês de boa estatura, uns quarenta e poucos anos, muito branco, cabelos escuros, bigodes caindo pelos cantos da boca. Tinha um sestro de viver colocando e retirando a caneta tinteiro do bolso da camisa e mexendo a boca como se quisesse alargar os queixos. Nunca se dirigia a empregados e muito menos aos negros estivadores que entrassem ou saíssem do armazém. A sociedade com Benedito Rodrigues veio por intermédio de outro francês, seu cunhado Louis Artois, já morto, irmão de sua mulher Clementine.

E essa senhora, tão dada aos exageros, foi quem chegando a Parnaíba, vindo da Argentina, mandou trazer de Paris uns dois mestres em pinturas de igrejas pra que fizessem a limpeza e restauro do altar da igreja de Nossa Senhora da Graça, dando um jeito na pintura dourada já naquele tempo muito desgastada. Mas foi aquela também que recusou sentar no mesmo banco da igreja ao lado de Euclides de Lacerda, comandante do navio Estrela do Maranhão, só porque era mulato, numa festa da padroeira.

Depois de todo aquele alvoroço e de serem chamados todos os maiorais, os mais ricos, o intendente, o pessoal da associação dos comerciantes de Parnaíba, o gerente do Banco do Brasil, o delegado e o capitão do porto passaram a fazer as investigações pra chegarem ao autor e no mandante do crime. Foram em cima e foram embaixo e não chegaram a ninguém. E a culpa acabou caindo em cima de um pobre diabo, o esmoler Guaxinim, um sujeito sem nome e sem origem, que vivia pra cima e pra baixo dormindo entre as embarcações, comendo um resto de comida hoje aqui e amanhã ali, dado por algum marinheiro ou recebendo algum tostão pelo serviço de limpeza de algum quintal dos endinheirados.

O delegado Pedro de Souza Brito, depois de receber uma vultosa quantia de Miro Borges, pelo que se soube depois, mandou recolher ao xadrez o suspeito a fim de proceder ao interrogatório. Guaxinim negou por Deus e pela mãe e pelo pai que nem ele conhecia! Vai ver que num momento depois de ter bebido muita cachaça e por algum tostão alguém de más intenções lhe molhou a mão pra fazer aquele serviço que causou um prejuízo sem tamanho. Muito dinheiro envolvido, perda de impostos, desemprego, confusão e desassossego pra todo o porto Salgado e pra Parnaíba!

Apolônio apareceu no porto Salgado uns dois dias depois do ocorrido. Fingindo saber pouca coisa, concordando com esta ou aquela opinião, botando sentido em gente que não conhecia, de olho nos ajuntamentos. Estava pisando nos calcanhares, tal o medo que estava sentido de ser descoberto.

Mas quem era que naquela situação de passado o perigo iria suspeitar que fosse ele, negro Apolônio, trabalhador no porto, de chuva, sol e sereno, pau pra toda obra, havera de ter sido quem tocou fogo no barco carregado de pó de cera de carnaúba que iria pra os Estados Unidos da América do Norte? À tarde quando tudo já havia passado, olhando pra um lado e pra o outro, contou o dinheiro recebido pelo serviço e correu a mão num resto de comida pra dar a um cachorro que estava criando entre os armazéns do porto Salgado.

*Pádua Marques, cadeira 24 da Academia Parnaibana de Letras.






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