Era passar um embarcadiço mais limpo e perfumado vindo do Porto Salgado com algum sinal de mil réis na burra ou um negro de melhor feição que fosse no rumo das casas de raparigas na Coroa e lá estava Cunhandita se mostrando na janela e se fazendo de faceira. Aos sábados e domingos largava o fogão e os trens da cozinha da casa de doutor José Cândido e na companhia de outras negras atravessava a rua Grande pra ir à missa na igreja do Rosário.
Cunhandita, negra cozinheira da casa do médico doutor José Cândido de Deus e Silva, mas nos assentamentos da igreja era Benedita dos Santos e só. Santos ela ganhou de sobrenome por ter nascido logo nos primeiros dias de novembro daquele ano de 1794, no Igoronhon, Maranhão, e dada ela e dois irmãos como pagamento de uma dívida do comerciante de madeiras Simião Justino ao doutor seu dono e patrão.
Os irmãos Miguel e Onofre quando tinham dezoito e vinte anos morreram no naufrágio de uma canoa carregada de bananas entre as Canárias e a Tutoia vindo pra vila da Parnaíba. Morreram e ficou por isso mesmo. Cunhandita acabou ficando sozinha no mundo. Largado o serviço da cozinha, onde fazia de um tudo, se punha na janela e num descuido da patroa, que vivia cochilando por dê cá aquela palha, ia até a porta pra dar definição de quem entrava e quem saia das outras casas na rua Grande e adjacências.
E nesse ofício de ficar espiando a vida alheia e se insinuando e mostrando os peitos na janela pra quem quisesse ver, acabou chamando a atenção de Raimundo Dias da Silva, irmão do capitão Simplício Dias, marido de dona Isabel Tomásia. Era rapaz de boa presença, rico, doido por farra na Coroa e no Porto Salgado e que viu na negrinha de antes de vinte anos, na flor da idade, tudo e mais um pouco pra movimentar sua vida naquela vila da Parnaíba em 1811. Cunhandita agora era meter a cara na porta e lá estava o filho de finado Domingos Dias da Silva passando a cavalo e tudo o mais.
Cunhandita no início quis se fazer de difícil naquele mundo onde estava desamparada e onde um negro nunca iria ter direito nem muito menos ser acreditado. Sentiu que Raimundo Dias da Silva queria alguma coisa, mas pensasse o que pensasse, ela era moça de casa de família. Vai que o doutor José Cândido fica sabendo? Era coisa de sair com uma mão na frente e outra atrás e tendo certeza de um grande castigo. Mas não houve quem fizesse Raimundo arredar o pé. Era de dia e de madrugada esquentando os fundos das calças numa sela do cavalo e assobiando, em teme de acordar o doutor.
Passados uns meses Raimundo e Cunhandita estavam se deitando. E mais um pouco, um belo dia de tarde a patroa desconfiou que a negra estava era prenhe! Não bateu e nem tirou pedaço, mas deu uma prensa bem dada. Cunhandita não queria dizer o nome do autor do mal feito. Foi o custo da mulher do médico ameaçar contar a situação ao marido. Coisa de no mínimo uma dúzia de bolo de palmatória bem dada. Aí a negra caiu das carnes, chorou, pediu clemência, lembrou a vida miserável e a morte dos irmãos, coisa e tal. Disse nome e sobrenome, Raimundo Dias da Silva, irmão de capitão Simplício Dias. A casa de José Cândido de Deus e Silva e as próximas da igreja quase vieram abaixo.
Doutor José Cândido foi informado uns quinze dias depois do ocorrido e numa noite entre uma conversa com Simplício Dias e o irmão sobre a ocorrência de incêndios nos armazéns de charque que tiveram como suspeitos uns negros fugidos pra Araioses no Maranhão, pediu que o irmão Raimundo Dias da Silva reparasse o erro de fazer mal à negra cozinheira de sua casa. As conversas já haviam deixado as camarinhas pra ganhar a gente mais elegante na praça da matriz, nos pontos de comércio e até nas repartições do governo da vila da Parnaíba.
Simplício chamou o irmão Raimundo e mandou que desse jeito naquele embrulho em que havia se metido. Falou pras paredes! Que negra? Fazia empenho de se deitar com diabo de negra? Queria que se casasse abugigado? Era de dar ocupação de seu tempo com negra fedendo a azeite? Mas se o irmão Simplício Dias fazia mesmo questão de criar justiça com pouca coisa, que arranjasse ele mesmo um casamento pra Cunhandita com algum negro de suas terras nos Morros de Mariana, Tatus, lugar bem longe! Era a saída.
Do dia pra noite Cunhandita deixou a casa de doutor José Cândido e foi embora pra sua terra. Levou umas mudas de roupas e algumas moedas de tostões que recebeu do patrão e da mulher pra nunca, mas nunca mais por os pés na vila da Parnaíba. Quando tomou assento na canoa naquele início de tarde no porto Salgado pra ir embora de uma vez da casa do patrão, Cunhandita estava com a barriga já tomando vulto e junto de negro Afonso, seu camarada. Quando caiu a noite a vila da Parnaíba pode dormir sem medo de escândalo, mas Raimundo Dias da Silva iria continuar andando a cavalo, feito quem vira bicho e assobiando embaixo das janelas alheias.
* Pádua Marques, da Academia Parnaibana de Letras e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba, colaborador do O Piagui.
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