Ontem eu encontrei o velho Quincas, o jardineiro que trabalhara em minha casa quando morei em Pedro Juan Caballero. Bebia meu chá-mate em um conhecido café de Montevidéu, e meu espanhol nunca me deu problemas. Falou dos cinco anos que não via Belchior, o velho latino americano de quem éramos amigos. Falamos dele, de como fazia a poesia com amor. Todo mundo conhecia aquele poeta famigerado, bastava ouvir ou ler algo dele. Lembro da nossa última conversa, do último aperto de mão. Andava angustiado, mas feliz por voltar à velha Sobral para uma visitinha, lá o encontrei. Mostrou-me os versos de algo inédito, ainda faltava a melodia, segundo ele, mas eu sabia que aquilo estaria longe de ser um problema.
Foi uma tarde toda, misterioso e certeiro. Voltei para casa, já sabendo que seria nossa conversa derradeira. Não era fácil vê-lo. Ele era assim. Algum compositor baiano lhe disse que tudo era divino, tudo era maravilhoso, e ele acreditou. Denomino-o assim: divino e maravilhoso. Andava com canções do rádio gravadas à ferro e fogo no inconsciente, que sempre cantava quando não havia o que dizer, o que era raro.
Aquele velho amigo era o mais existencial dos homens, devo dizer, depois de Sartre. Todos que conheço sabiam de algum verso dele, e isso sempre encheu meus pulmões de orgulho. Agora por último eu não o via mais, nem mesmo pela televisão. Respeitava seu espaço. Suave e intenso. Naquele mesmo dia do café com o Quincas, fiz alguns versos durante o voo de volta ao Brasil. Soube da partida do meu velho amigo por uma televisão do aeroporto, quando voltei. Só consegui chorar dentro do táxi, enquanto a paisagem nua ia passando pela janela que estava embaçada por uma garoa antecessora, com Paralelas na minha sonoplastia mental. Se medisse as palavras e não quisesse agredir ninguém, não seria ele. Autenticidade e brandura não combinavam na pessoa dele.
Não irei no velório de meu amigo, seria demais. Melhor assim. Deixo-o em seus versos sangrantes, que mal detinham o sentimentalismo, quando o fazia. Essa é a última lembrança que quero levar. Basta que eu escute seus versos sem o pudor em controlar o volume, que valerá por trocentas outras conversas, ele ressuscitará por uns seis minutos, voltará de onde estiver. Foi como quis ir, recluso, ensimesmado. Muitos não sabem, mas ele queria assim, era feliz assim. E sabe, Copacabana? Essa semana o mar é ele. Aquele bigode largo e livre fará falta, mas fazer da vida uma poesia reproduzida será das artes a mais humana. Como foi perversa a juventude do meu coração. Acho que agora abriram o sinal, e a juventude dele se libertou. Sempre.
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