O escravocrata Antônio Benício Saraiva libertou seus escravos cinco
anos antes da princesa Isabel assinar a Lei Áurea. Fazendeiro e
político, Saraiva concedeu alforria em troca de indenização paga pelo
Governo Provincial. Segundo o jornal abolicionista Libertador, o
escravista fez da “liberdade” um negócio lucrativo. Inicialmente
soltando “seus negros” no município de Baturité, o fazendeiro levou-os
para Quixeramobim e alforriou novamente os mesmos escravos – ganhando,
assim, indenização em dobro.
A denúncia sobre o
episódio envolvendo Antônio Benício Saraiva (1823 – 1920) foi publicada,
em outubro de 1883, no jornal Libertador. A história do fazendeiro e
outras irregularidades que antecederam a abolição no Ceará foram
noticiadas pelo periódico oficial da Sociedade Cearense Libertador, mais
destacada agremiação abolicionista que atuou no Ceará.
Debruçando-se
sobre o conteúdo do Libertador, o historiador cearense Américo Souza
tem encontrado denúncias como: libertação dos mesmos escravos mais de
uma vez, histórias de cativos vendidos por preços exorbitantes e relatos
de negros “livres” que continuaram sob o domínio dos senhores. Américo é
professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira (Unilab) e, junto dos orientandos Ellen Jardani e George
Cavalcante, tem atualizado discussão sobre os processos que levaram ao
fim do regime escravocrata.
“A abolição da escravidão no Ceará
foi, em última instância, um grande negócio, no qual os proprietários
foram os que mais lucraram; o povo, especialmente os escravizados, os
que mais perderam e o Estado foi quem pagou a conta”, afirma Américo. O
historiador ressalta: a “esmagadora maioria” das alforrias foram obtidas
por meio de indenização paga pelo Governo Provincial.
Criado
em 1881 e tendo circulado até 1892, o jornal Libertador cobriu os
bastidores da abolição cearense, ocorrida com quatro anos de
antecedência em relação ao resto do País. Naquele 25 de março de 1884,
Sátiro de Oliveira Dias, presidente da província do Ceará, decretou
liberação de todos os escravos dessas terras. Passados 130 anos, o feito
é agora analisado para muito além da obra de uma “elite branca,
humanista e modernizadora que quis por fim ao regime”, como pontua
Américo.
Busca de lucro
“A quota do fundo
de emancipação, agora distribuída ao Ceará, será aproveitada para
arranjos e outros fins inconfessáveis, como tem sucedido, se as juntas
respectivas não se acautelarem contra esses negreiros infames”, publicou
o jornal Libertador em 17 de Agosto de 1883. O fundo monetário
estabelecido pelo Governo Imperial era destinado à libertação de
escravos e distribuía recursos para a indenização dos senhores.
Além
do dinheiro advindo do Governo Imperial, entre 1868 e 1883, a
Assembleia Provincial do Ceará, composta em sua maioria por deputados
proprietários de escravizados, aprovou um conjunto de leis que
autorizava o Governo Provincial a destinar grande soma de recursos para a
compra de alforrias. Assim, os próprios escravocratas criaram leis para
conseguir libertar seus escravos em troca de altas quantias de
dinheiro.
“As denúncias de Libertador revelam a fragilidade do
poder público em fiscalizar o cumprimento da libertação dos cativos
após o pagamento das indenizações, bem como o caráter clientelista do
processo de abolição que foi, em grande medida, um negócio lucrativo”,
afirma Américo. Segundo o historiador, os escravocratas encontraram com a
liberação dos escravos uma forma de se recuperar dos prejuízos advindos
de crise econômica pela qual a Província passava desde o declínio da
exportação de algodão, no final da década de 1860.
Os escravos
recém-libertos, por sua vez, não tiveram acesso a recursos do poder
público que lhes possibilitassem uma reinserção social. Após a abolição,
os ex-escravos se tornaram homens e mulheres livres, mas sem acesso a
direitos como moradia e educação. A falta desses direitos, muitas
vezes, lhes obrigavam a se tornar empregados de seus antigos senhores e
seguir trabalhando em condições equivalentes à escravidão.
SAIBA MAIS
Outro episódio encontrado
no jornal Libertador relata batalha judicial entre escravistas da
cidade de Russas e o Governo Provincial. Visando lucrar ainda mais com a
libertação dos cativos, um grupo de senhores acionou o Poder
Judiciário para “obrigar” o Governo a pagar quantias mais elevadas
pelas alforrias. “Classificados 23 escravos, que estavam nas condições
de obterem liberdade, os senhores não quiseram convencionar preço com o
coletor esperando coisa melhor perante o juiz municipal”, publicou o
periódico 18 de em outubro de 1883.
O episódio foi
julgado pelo juiz de Russas – chamado na matéria por Dr. Guedes –, que
concedeu ganho de causa aos escravistas. O Libertador relata que a
decisão dobrou o valor da indenização para a alforria de alguns
escravos e denuncia: o pai do juiz estava entre os fazendeiros
beneficiados.
Segundo levantamento
realizado pelo pesquisador Américo Souza e seus orientandos, o jornal
Libertador denunciou – entre 1883 e 1884 – outras 17 ocorrências, além
dos casos de Antônio Benício Saraiva e dos fazendeiros de Russas.
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