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“Não existe pecado abaixo do Equador”, repetiam gostosamente nossos colonizadores, entusiasmados com a nudez das índias e africanas, presas fáceis de seus desejos reprimidos. Mas seria ilusão imaginar uma terra sem pecado. Ainda mais quando os próprios colonizadores traziam consigo uma tradição de forte repressão religiosa às práticas sexuais.
A sexualidade humana é sempre uma construção cultural, e a do povo brasileiro resulta da conjunção de três matrizes. O modelo sexual hegemônico dos donos do poder fundava-se na moral judaico-cristã, fortemente marcada pela “sexofobia” – uma espécie de medo dos prazeres sexuais. Do outro lado, os modelos periféricos indígena e africano caracterizavam-se pela grande permissividade sexual, nos quais os próprios deuses tribais reproduzem as práticas carnais dos humanos. Para evitar tais ameaças desestabilizadoras, diversas instâncias da Igreja no Brasil colonial se mobilizaram, impondo como modelo único a moral católica, baseada no Antigo e Novo Testamentos e no Catecismo Romano publicado pelo Concílio de Trento (1545-1563).
A moral sexual católica tinha como traços fundamentais o tabu da nudez, a monogamia, a indissolubilidade do matrimônio sob o comando do patriarca, a virgindade pré-nupcial e a forte condenação da homossexualidade e do travestismo. De forma oportunista, tolerava-se o pecado mortal da prostituição, um mal necessário para garantir a pureza das donzelas casadouras. Na contramão de moral tão rígida, as culturas sexuais dos indígenas e africanos escravizados lidavam tranquilamente com a nudez, praticavam a poligamia generalizada e os tabus escandalosos de incesto para os cristãos. Além disso, conviviam pacificamente com praticantes do homoerotismo e do travestismo tanto masculino quanto feminino. “Os tupinambás são tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não cometam; os quais sendo de muito pouca idade têm conta com mulheres... e em conversação não sabem falar senão nestas sujidades, que cometem cada hora. São mui afeiçoados ao pecado nefando (homossexualidade), entre os quais se não tem por afronta; e o que serve de macho, se tem por valente, e contam esta bestialidade por proeza”, alertava, na Bahia de 1587, o senhor de engenho português Gabriel Soares de Sousa.
Em meio à diversidade cultural das centenas de etnias da diáspora negra, a sexualidade dos africanos que vieram escravizados para o Novo Mundo incluía o livre exercício da poligamia, a prática da circuncisão nos meninos e das mutilações genitais nas donzelas e a aceitação da homossexualidade.
"Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime", escreve Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala (1933), demonstrando que a exacerbada licenciosidade erótica observada no Brasil Colonial deve ser explicada não por "defeito" dos africanos e indígenas, mas pelo abuso de uma raça por outra: “ao senhor branco, e não à colonização negra, deve-se atribuir muito da lubricidade brasileira”.
O machismo ibérico assumiu no Novo Mundo uma feição muito mais agressiva do que a observada em Portugal e Espanha à época das Descobertas. Nas Américas, somente com extrema violência e autoritarismo a minoria branca senhorial conseguia manter submissa a enorme massa populacional de índios, negros e mestiços. Daí ter-se desenvolvido um código de hiper virilidade, que repelia entre os machos brancos, como se repele a peste, qualquer conduta ou atitude efeminada, pois ameaçavam os alicerces da manutenção dessa sociedade profundamente hierárquica. Aí está a raiz do machismo e da homofobia à brasileira, filhos bastardos da escravidão.
Com vistas a evitar que a Terra da Santa Cruz se convertesse numa filial de Sodoma, a cruz e a espada se uniram para manter o rebanho obediente à tradicional moral cristã, tudo fazendo para garantir a primazia da única expressão permitida de canalização dos desejos da carne: o leito matrimonial visando à reprodução da espécie, cumprindo assim o decreto divino “Crescei e multiplicai-vos”.
Desde os primórdios da colonização, a primeira e constante cruzada dos jesuítas, franciscanos e demais missionários era combater a nudez de índios e africanos, obrigando os senhores a providenciar roupas para tapar as vergonhas de seus cativos. Também lutaram incansavelmente para limitar os tratos ilícitos e a mancebia dos brancos com mulheres de cor, erradicar a bigamia e a poligamia, além de reprimir os praticantes do abominável pecado de sodomia. Muitas foram as estratégias utilizadas pela hierarquia eclesiástica na repressão às sexualidades desviantes, interpretadas como ciladas do demônio contra a salvação dos filhos de Deus: o catecismo ensinado nas igrejas com ênfase no sexto Mandamento, “não pecar contra a castidade”, as pregações nos púlpitos e nas santas missões ameaçando os imorais com o fogo do inferno, as devassas episcopais e as visitações do Santo Ofício que percorriam de tempos em tempos grande parte da América portuguesa, estimulando denúncias e confissões de desvios da moral sexual.
Numerosos colonos foram denunciados à Santa Inquisição, não só por adotarem comportamentos sexuais condenados como pecados mortais – incluindo supostas cópulas com o próprio Demônio – mas também por desafiarem a moral divina, defendendo, por exemplo, que não era pecado manter relação sexual com índias, desde que se lhes pagasse nem que fosse com uma camisa. Outros defendiam proposições heréticas, como a de que casar era melhor do que ser padre e fazer voto de castidade, embaralhando a hierarquia celestial na qual as virgens e os religiosos celibatários estavam mais próximos do trono de Deus do que os casados, as viúvas e as ex-prostitutas.
Todas as pessoas eram obrigadas a se confessar ao menos uma vez por ano, por ocasião da Páscoa. O pecador tinha que desfazer uniões sexuais não permitidas sob o risco de não receber a absolvição e ir direto para o inferno após a morte. Era indispensável a todo católico o “certificado de desobriga”, podendo ser multado ou até degredado para a África caso se tratasse de um desviante sexual público e notório. Enquanto os párocos e os bispos reprimiam com advertência e multa os adúlteros e amancebados, os inquisidores perseguiam os bígamos, sodomitas e padres que assediavam sexualmente suas penitentes. Mais de uma centena destes desviantes sexuais foram presos e penaram rigorosos castigos nos cárceres secretos da Inquisição de Lisboa.
Para aterrorizar os faltosos e inibir novas delinquências, a Igreja proclamava suas sentenças condenatórias na mesma freguesia onde viviam e onde cometeram tais escândalos imorais. Além disso, abusou da pedagogia do medo, aplicando castigos públicos, como o imposto em 1591 pelo visitador do Santo Ofício em Salvador contra Felipa de Souza, 35 anos, costureira, culpada de diversos namoricos com outras mulheres, “dormindo na mesma cama, ajuntando seus vasos dianteiros e deleitando-se”. O ouvidor da Capitania levou-a do Terreiro de Jesus até a Sé da Bahia, onde vestida simplesmente com uma túnica branca, descalça, com uma vela na mão, de frente para a Mesa Inquisitorial, ouviu sua ignóbil sentença. Em seguida foi açoitada publicamente pelas principais ruas da então capital da Colônia, enquanto o ouvidor lia o pregão: “Justiça que o ordena fazer a Mesa da Santa Inquisição: manda açoitar esta mulher por fazer muitas vezes o pecado nefando de sodomia com mulheres, useira e costumeira a namorar mulheres. Que seja degredada para todo o sempre para fora desta capitania”.
O Tribunal da Santa Inquisição seria extinto apenas em 1821. Só então a Igreja perdeu o poder de prender, açoitar, sequestrar e queimar os delinquentes sexuais. Três séculos desta ferrenha repressão deixaram sequelas: o Brasil é destaque mundial em casos de abuso sexual, gravidez de adolescentes, altíssimos índices de contaminação pela Aids por relações sexuais, crimes homofóbicos. A moral cristã errou em perseguir bígamos, sodomitas, libertinos e livres pensadores. Inquisição, nunca mais.
Luiz Mott é professor da Universidade Federal da Bahia e autor de O sexo proibido: virgens, gays e escravos nas garras daInquisição(Papirus, 1989).
Fonte: Revista História