por Clóvis Rossi*
Margaret Thatcher foi assassinada por imitadores de quinta categoria muito antes de morrer de fato.
Refiro-me, como é óbvio, aos líderes europeus que vêm adotando políticas
de rigor orçamentário e privatizações selvagens, duas das grandes
marcas do "thatcherismo", mas de uma maneira burra.
O que estão conseguindo com esse "austericídio", como alguns o chamam, é levar a democracia ao coma.
Há pelo menos duas diferenças essenciais entre o thatcherismo e o
austericídio: Thatcher promoveu de fato cortes em programas sociais, mas
nem de longe parecidos com os que estão sendo aplicados agora.
Basta lembrar que o lendário National Health Service (Serviço Nacional
de Saúde) sobreviveu à era Thatcher, ao contrário do que está sucedendo
com a saúde pública em países como Portugal, Espanha e Grécia, por
exemplo.
Segundo ponto: dura como era, Thatcher jogou o jogo da democracia tanto
que foi reeleita duas vezes, em 1983 e 1987, o que só pode significar
que suas políticas eram suficientemente populares para ganhar eleições,
goste-se ou não delas.
Já os atuais dirigentes europeus violentam seguidamente a democracia.
Impediram, por exemplo, que o então primeiro-ministro grego, Georges
Papandreou, promovesse um plebiscito sobre o austericídio, quando dar ao
eleitorado a última palavra sobre o que o governo deve fazer é a
quintessência da democracia (não é, afinal, o governo do povo, pelo povo
e para o povo?).
Segundo exemplo: impuseram à Itália um tecnocrata não eleito, quando
precisaram derrubar o bufão que governava o país à época (Silvio
Berlusconi). Mario Monti, o tecnocrata, fracassou tão redondamente em
sua versão do austericídio que colheu apenas 10% ao tentar legitimar seu
governo nas urnas.
Não seria diferente o destino dos governantes da Espanha e de Portugal:
neste último, o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho é o recordista de
impopularidade de todos os tempos. Na Espanha, nem somados os dois
partidos que dominaram a política local nestes 36 anos de democracia
chegam a 50% (o Partido Popular e o Partido Socialista Operário Espanhol
levariam juntos 47,5% dos votos, se a eleição fosse hoje, quando
obtiveram, há escassos 16 meses, 73% dos sufrágios).
Impossível discordar de Adela Cortina, catedrática de ética e filosofia
política, quando ela escreve para "El Pais": "Resulta desalentador ver
que a Europa, que inventou a democracia na Grécia clássica, que cunhou a
ideia da dignidade humana como núcleo da vida compartilhada, que
potencializou a racionalidade não só científica mas sobretudo moral, que
descobriu o Estado social e a possibilidade de uma comunidade
supranacional, traia sua própria identidade com um tenaz empenho
suicida".
Antes, no livro "Democracia", o filósofo italiano Paolo Flores D'Arcais
já havia escrito que os poderes políticos europeus estão totalmente
submetidos às exigências do poder econômico.
A morte física de Margaret Thatcher só acentua a orfandade de uma direita que era inflexível mas não era burra.
* Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha,
ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un
Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às terças, quintas e
domingos no caderno "Mundo". É autor, entre outras obras, de "Enviado
Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo" e "O Que é Jornalismo". Escreve às
terças, quintas e domingos na versão impressa do caderno "Mundo" e às
sextas no site.